Sentado no banco de trás do carro,
guiado pelo chauffeur, J. Pinto
Fernandes baixou o vidro elétrico e gargalhou, após jogar um ovo podre na
direção de um grupo de sem-teto, que morava sob o viaduto, por onde ele
passava. O motorista até olhou pelo retrovisor, mas nada viu. Afinal, era pago
para dirigir, não para ver, ouvir ou falar qualquer coisa que fosse.
Mais à frente, teve que
fazer um desvio para fugir do engarrafamento provocado pela multidão de
manifestantes, que Jota nem quis saber por que protestavam. Antes, porém, ainda
os xingou de vagabundos. Emendaria um ‘vão trabalhar’, mas foi interrompido
pela forte dor no peito que sentiu. Era infarto.
Foi levado às pressas ao
hospital particular mais renomado do País, não muito longe dali. Teve
atendimento prioritário e a vida salva pelos maiores especialistas em
cardiologia da América Latina.
Refeito temporariamente do
susto, foi avisado pelos médicos que ainda precisava ser submetido a um
transplante de coração, o que poderia demorar meses, talvez anos, à espera de
um doador. O problema foi resolvido em questão de minutos, o tempo de assinar
alguns talões e fazer uns telefonemas. Assim, ele passou do fim ao topo da lista.
Foi levado imediatamente à sala de cirurgia, que durou algumas horas. Um
sucesso.
Semanas depois, estava em
casa. As visitas estavam autorizadas, mas ninguém aparecia. Até aí, nenhuma
surpresa. Entediado, em um desses dias, levantou-se da cama, dizendo que queria
ver movimento. Caminhou até o carro e, para espanto do motorista, se sentou no
banco da frente.
― Bom dia, Charles ― disse
Jota, deixando o chofer sem palavras. Charles nem imaginava que era do feitio
do patrão falar com subalternos. Aliás, não lhes era nem permitido o
atrevimento de dirigir a palavra ao dono da casa. Diante do titubeio do seu
potencial interlocutor, Jota repetiu a saudação, e teve como resposta um tímido
‘bom dia, senhor’.
Andaram sem rumo pelas ruas
da cidade, enquanto, o passageiro procurava conhecer melhor o companheiro de
passeio. Até que, ao andarem sobre aquele mesmo viaduto, Jota percebeu que o
grupo de sem-teto não estava mais lá.
― Para,
por favor ― pediu
Jota. O motorista atendeu prontamente, sem perceber que o patrão usava pela
primeira vez na vida a expressão ‘por favor’.
― Eles foram removidos daí tem umas duas semanas, patrão.
― Pode me chamar de Jota, Charles. É assim que gostaria de ser tratado pelos
amigos, caso os tivesse. ― Os olhos de Jota dirigiam-se aos casebres que já não
existiam ali. Diante de suas vistas, repetiu-se a cena dos policiais retirando
à força os sem-teto daquela área. Ouviu os mesmos gritos de desespero, sentiu a
mesma ardência nos olhos provocada pelo gás lacrimogêneo e, na pele, as
investidas com cassetetes e balas de borracha. Jota não sabia por que, mas se
sentia indignado com a violência cometida contra aquelas pessoas que ele sequer
conhecia. Quando não se aguentava mais em indignação, pediu que Charles o
tirasse dali.
Ao passarem novamente sobre
o viaduto, Jota viu a cidade como nunca havia visto: reparou que pessoas se
amontoavam dentro de ônibus depenados; outras procuravam comida no lixo e
outras apenas um abrigo seguro para dormir. Sentiu seu coração bater mais forte
por todas elas. Não sabia dizer por que, mas, do fundo do peito, algo o impelia
a voltar ao hospital onde fora submetido ao transplante.
No hospital, pediu para
falar com o médico que chefiara a sua cirurgia. Foi atendido prontamente.
Afinal, ostentava o sobrenome Pinto Fernandes. O médico recebeu-o,
perguntando-lhe por sua saúde. Jota respondeu que, a princípio, estava saudável,
mas havia algo estranho. Algo que fazia com que ele não reconhecesse mais a si
próprio:
― Meu coração tem batido por coisas com as quais nunca me importei: sinto
indignação por atos que sempre apoiei; importo-me com pessoas por quem até
então só sentia desprezo. O que está acontecendo comigo, doutor? Aliás, o que
aconteceu durante aquela cirurgia?
― Sua cirurgia ocorreu dentro do previsto. Não houve qualquer anormalidade.
― Não pode ser. Algo deu errado. Doutor, de quem era o coração implantado em mim?
― Bem, o senhor sabe que divulgar esse tipo de informação é contra a política da
empresa. Mas, como tenho uma dívida eterna com a sua família, vou abrir uma
exceção. – E, assim, o médico contou que, no mesmo dia da cirurgia, havia
morrido um manifestante em confronto com a polícia: o professor de História da
escola secundária de uma comunidade carente das redondezas. Sem família, ele deixara
em documento registrado que queria ser doador.
Agora
tudo fazia sentido. Ou não. Na verdade, nada daquilo fazia sentido. Atordoado,
Jota saiu correndo do hospital e pediu que seu amigo Charles o levasse para
casa. No caminho, Jota ainda parou numa banca e comprou todos os jornais das
últimas semanas.
No
carro, a caminho de casa, leu tudo o que havia sido publicado sobre seu doador
de coração. Não era muita coisa: nome, idade, profissão e que trajava calça
jeans e camisa preta sem estampa no dia em que morrera. Um dos jornais dizia
que o professor era uma liderança comunitária, conhecida por organizar
protestos como aquele.
Ao
chegar à sua casa, Jota agradeceu ao motorista e disse que este poderia
descansar, já que não precisaria mais de seus serviços. No quarto, Jota revirou
o guarda-roupa, até encontrar uma calça jeans desbotada e uma camisa preta sem
estampa, que até achava que haviam sido jogadas no lixo anos atrás. Vestiu-se e
pôs uma mochila nas costas. Dentro da mochila, havia uma muda de roupa, uma
máscara e uma garrafa d’água sem rótulo. Saiu pela porta dos fundos de casa.
Decidiu ouvir de vez seu coração, que o empurrava para as ruas. Empunhou uma
bandeira em mãos e seguiu em frente.
* Selecionado para publicação em livro pelo CONCURSO NACIONAL DE
CONTOS DE SANTO ÂNGELO (RS)