quarta-feira, 25 de setembro de 2019

No meio do caminho, uma árvore

No meio do caminho tinha uma árvore. E a alguns metros dali, naquela mesma rua, tinha outra árvore no meio do caminho. Na ruela, calçada com paralelepípedo, as duas mangueiras ocupam a maior parte da via e os carros não passam em alta velocidade. A sombra das árvores vira estacionamento para os carros e abrigo para as famílias. Os vizinhos levam as cadeiras de casa para o meio da rua e passam horas jogando conversa fora. Debaixo das mangueiras, as crianças preferem brincar.

Foto: Dione Sampaio/FolhaWeb
Quem passeia por Boa Vista pode encontrar outras árvores no meio da rua. Do outro lado da cidade, a mangueira da Ataíde Teive exige que a avenida desvie o seu trajeto, fazendo uma leve curva à direita e à esquerda do canteiro, em forma de losango, construído em volta da árvore. A mangueira presenciou o crescimento da cidade, nas últimas décadas. A árvore cresceu. E Boa Vista cresceu em volta. 

As árvores no meio da rua lembram-nos que estamos na Amazônia, onde os imensos rios, ao passarem por dentro da mata fechada, desviam do que encontram pelo caminho, dando ao seu curso um sinuoso desenho. É como se a natureza vencesse o progresso e a vida seguisse o seu destino. 

* Esta crônica foi selecionada para publicação pela Jornada Literária 2017.

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segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Feito cães e gatos


Desde que o mundo é mundo, cães são cães e gatos são gatos. E cães caçam gatos e gatos fogem de cães. Mas uma verdade que muitos enterram na areia é que existem gatos, e não são poucos, que querem ser cachorros. E de tudo fariam para sê-lo.

Acontece que cães não são de aceitar gatos no clube. Mesmo assim, um grupo de felinos resolveu enfrentar as feras e não saiu em fuga com o rabo entre as pernas diante do primeiro 'não' ou mesmo da primeira rosnada.

Ao mostrar terem garra e serem bichos de raça, os tais gatos ganharam o direito de sonhar com a possibilidade de entrarem para a matilha. Não da noite pro dia; e nem de qualquer jeito. Eles seriam submetidos a provas.

Acordo feito, começaram os primeiros desafios: em poucos dias, os gatos deixaram de miar, se lamber e se esfregar nos humanos; aprenderam a latir, rosnar e atacar em bando. Mas entrar para a gangue não seria tão fácil. Eles teriam que fazer bem mais que mostrar os caninos afiados.

A cada dia, vinham testes mais e mais difíceis e perigosos. Um a um eram superados; e a vitória, festejada aos uivos. A última comemoração foi breve, logo interrompida pelo aviso de que aquela não era a prova final. A prova de fogo estava por vir e foi solenemente anunciada: para serem definitivamente aceitos no bando, eles deveriam fazer mais que imitar cães: tinham que agir e pensar como cães. O grande teste a eles imposto foi o de se voltar contra os próprios pares e, feito cães, caçar, ferir e matar outros gatos.

O susto com a notícia foi grande. Não foi fácil renegar a própria raça, mas eles já tinham ido muito longe pra desistir de tudo. Já que chegaram até ali, resolveram seguir em frente.

No começo, doeu um pouco neles, mas doeu muito mais na carne de suas vítimas: pobres gatos e gatas caçados, feridos e mortos. Os bravos gatos estavam definitivamente aprovados. Entraram para a matilha.

O tempo passou e os gatos-cães se multiplicaram e se tornaram maioria no bando. Aliás, passaram a dar as ordens. Já nem pareciam gatos. No comando, viram os cães se extinguirem. Para a alegria dos felinos, pensavam alguns, cansados de caçadas, ferimentos e mortes.

Mas não foi bem isso que aconteceu. Com o fim dos cachorros, os gatos-cães continuaram a caçar, ferir e matar gatos. Já não eram mais gatos que agiam feito cães. Agora, eles eram cães.

* Este conto foi selecionado para publicação pelo IX Concursos de Contos do Grupo Livrarias Curitiba e na revista LiteraLivre (16ª ed.).

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