segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Memórias de natal


O ano é 3025 d.C. Não sei exatamente o que isso significa. Alguém, certa vez, me disse que somos a geração sem memória. Nem lembro mais por quê. Talvez seja o excesso de informação.

É véspera de natal. Não há enfeites nos prédios, na frente das casas, nem nas árvores. Aliás, árvores restam poucas pela cidade. As ruas estão desertas. Não é por menos. Ruas são lugares perigosos. Por isso, é proibido permanecer nelas. Por aqui, ficam somente aqueles de muita coragem ou que muito necessitam. Este é o meu caso. Meu nome é Nicolau. Uma homenagem ao meu avô, o último Papai Noel de shopping da família.

Com o avanço da tecnologia, as pessoas deixaram de ir aos lugares fazer compras. As compras passaram a ir até elas. Os shoppings ficaram obsoletos e vô Nicolau perdeu o emprego. Minha avó, com quem fui criado, dizia que as crianças já não acreditavam em Papai Noel, o que acabou com o espírito do natal. Até hoje, não entendo o que ela quis dizer com isso. Afinal, as pessoas continuam a gastar muito nas festas de fim de ano, como sempre foi.

Meu sonho era ser médico, mas não passo de um andarilho, a perambular pelas ruas, vestido com a antiga fantasia de Papai Noel do meu avô. Minha vida é pedir moedas dos poucos que encontro pelo caminho.

Algo me diz que hoje será um dia incomum. Talvez por causa da manifestação que, pelo que ouvi dizer, será aqui na Praça Central. Motivos para protestos sobram, mas há também muito medo do que possa acontecer a quem deles participe.

De repente, a praça fica lotada. A maioria parece ser de jovens, que cobrem o rosto com máscaras de LED. A tropa de choque chega logo em seguida. Cada soldado na sua nave. Há uma gritaria geral, seguida de tumulto, empurra-empurra e correria. A tropa joga água salinizada na multidão e aciona o dispositivo de choque. A maioria cai desmaiada. Alguns conseguem fugir. Terminado o trabalho, a tropa parte em revoada.

Aproximo-me dos feridos, para ver como posso ajudar. Meu Deus! Entre eles há uma grávida! A jovem de pele negra e olhar determinado reclama de fortes dores. Com a ajuda de um homem de barba e cabelos grisalhos, pego-a no colo e a levo a um lugar seguro perto dali. À sombra de uma árvore, forro o chão com a bandeira lilás que a jovem trazia na mão direita.

— O que você estava fazendo, grávida, naquela manifestação? — questiono-a.

— Era necessário — responde ela.

Penso em dizer que nunca vira em alguém tamanha loucura, mas digo ‘coragem’.

— Não há mais tempo para conversa. Ela está em trabalho de parto — interrompe-nos o ancião, pelas mãos de quem o bebê viria ao mundo, minutos depois.

O homem confidencia-nos que aprendera com a mãe, viúva, a fazer partos. Ela era uma mulher forte que, além de ajudar crianças a nascerem, dedicava a vida a tratar enfermidades dos desenganados que a procuravam.

— Qual o seu nome, menina? — pergunta o ancião.

— Maria — ela responde.

— Parabéns, Maria. Bendito é o teu filho! — diz o homem, ao envolver o menino na faixa em que se lia ‘Pelos direitos das mulheres’. Ao olhar Maria nos olhos, o ancião diz que ela lembra outra mulher de muita coragem, e nos conta uma história que me parece tão familiar, apesar de nunca tê-la ouvido.

Fala-nos de uma jovem também chamada Maria, que vivera há muito tempo bem longe dali. Ela estava noiva quando foi chamada para ser a mãe do filho de Deus, aquele que, ao ouvir o clamor do seu povo oprimido, desceria do céu para libertá-lo. Maria sabia que aquilo era arriscado. Temia chorar as dores de ver o filho morto por desafiar os interesses dos poderosos. Antes ainda, corria o risco de ser apontada nas ruas como mãe solteira e ser apedrejada até a morte, por trazer no ventre um filho fora do casamento. Mesmo assim, aceitou a missão.

O noivo de Maria era um homem bom e a amava muito. Não deixaria que o pior lha acontecesse. Aceitou a noiva e o filho que ela trazia no ventre.

Por conta de um governo tirano, mesmo com Maria grávida, foram obrigados a deixar a própria casa. Como retirantes, sem lugar para repousar a cabeça, Maria deu à luz. O menino foi visitado por humildes trabalhadores das redondezas e gente vinda de longe, que era acusada de feitiçaria por olhar as estrelas e prever o futuro.

Anos mais tarde, aquele menino mudaria para sempre os rumos da História. Daria a maior prova de amor à humanidade e uma grande lição a todos nós: amar uns aos outros como ele nos amou.

Ao ouvir aquelas palavras, a jovem Maria e eu, ali debaixo da sombra daquela árvore, sentimos arder nosso coração. Da minha parte, por achar que a história não poderia cair no esquecimento, resolvi levá-la, aonde quer que eu fosse, a quem precisasse dela.

Agradecida, a jovem Maria resolveu dar ao recém-nascido o nome daquele que salvara a vida de seu filho.

— Como se chama, bom homem? — perguntou ela ao ancião. Com um olhar que nos inspirava, ele respondeu com mansidão:

— Eu sou... Jesus.


* Este conto foi selecionado para publicação na antologia Mirage 2.


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