Não. Diferente do que muitos pensavam e
alguns diziam, ele não vivia do lixo. Neto era catador de material reciclável.
Lixo era o que sobrava daquilo que ficava de fora de sua criteriosa seleção.
Cobre, zinco e alumínio, papel, papelão, plástico e pneus. Nada passava
despercebido aos seus olhos. Com pedaços de madeira que encontrava pelo
caminho, já havia até mobiliado boa parte de seu casebre.
Um objeto chamou sua atenção, certa vez.
Era um material escuro e resistente, em meio a jornais e revistas. Pegou-o com
cuidado e percebeu que se tratava de um livro capa dura sem ilustrações. As
letras eram minúsculas e exigiam esforço de quem tentasse decifrá-las. Apesar
de uma mancha de café em todas as páginas, o papel apresentava bom estado de
conservação. Neto levou o livro para casa.
Antes de se deitar, à luz de lamparina,
folheou algumas páginas, enquanto jantava uma sopa requentada, como de costume.
Sua intenção era saber se o livro tinha potencial para ser vendido a um sebo ou
tão somente iria para a reciclagem. A leitura o fisgou de tal forma que ele não
conseguia parar de folhear a obra. Foram pelo menos três capítulos em questão
de minutos, até que, vencido pelo cansaço de um dia inteiro de trabalho,
adormeceu com o livro nos braços.
No dia seguinte, saiu cedo com sua
carroça coletora, mas não esqueceu o livro. Levou-o a tiracolo e, nos
intervalos para descanso, avançava na leitura. Nunca ouvira falar daquela obra.
Não havia como saber se era um título raro, um fracasso de vendas ou uma publicação
marginal. Página a página, Neto se perguntava por que aquilo demorara tanto
para encontrar seus olhos. Não sabia a resposta. Por sinal, nem o livro lhe
trazia resposta alguma; somente questões. Ele não entendia o que tanto o
prendia naquela obra. Talvez o fato de, ao ler, não se sentir preso, mas
inexplicavelmente livre.
Muitas palavras fugiam de seu
vocabulário. Ainda assim, apreendia, pelo conjunto, o que dizia o autor. A
linguagem era direta e dialógica. O escritor parecia falar diretamente a Neto.
A cada capítulo, fazia-lhe perguntas, às quais Neto se esforçava para
responder, ainda que isso o levasse a novas questões, cada vez mais complexas,
agora feitas pelo próprio leitor. Por vezes, o autor fazia gracejos e ambos,
autor e leitor, juntos, caíam na gargalhada.
O livro falava de um lugar deserto, onde
outrora era intenso o tráfego de seres humanos. Agora só restavam ali animais
de carga abandonados pelos antigos donos. O incrível é que continuavam a ir e
vir como se ainda estivessem a transportar pessoas e mantimentos em troca de
capim. Muitos morriam de fome e estafa nessa infindável viagem. Alguns se davam
conta de que não havia mais um dono a chicoteá-los e que só a eles próprios
cabia perseguir alimento e o seu destino. Raros grupos debandavam-se e
descobriam terras férteis nas redondezas.
Finda a leitura, Neto começou a se
perguntar se não somos todos animais de carga a perambular de um lado para o
outro sem saber sob as ordens de quem. Pensou ele que deixar de enxergar que
não temos dono e que podemos seguir novos rumos significa estar fadado a morrer
uma indigna morte, antecedida de uma vida não menos indigna.
Neto olhou para si e para os lados. Não
suportava mais ser visto como lixo, descartado como os animais de carga da
história abandonados pelo dono. Estava disposto a fazer algo; só não sabia o
quê. Partilhava suas angústias com os colegas de ofício. No princípio,
ridicularizavam-no: diziam que enlouquecera, que não havia nada a fazer e que,
desde que o mundo é mundo, tudo sempre foi assim.
Mas, aos poucos, o que Neto dizia tocava
as pessoas e passava a fazer sentido. Ele já não estava só. Agora eram várias
vozes numa só voz. Passaram a se reunir com frequência para conversar. Cada vez
mais, o grupo crescia. Falavam sobre o que viviam e queriam. Decidiram tomar as
próprias rédeas e traçar novos caminhos. Começaram a exigir tratamento digno.
Afinal, eram trabalhadores cujo labor impedia que a cidade se tornasse o lixo
que seres de passagem produziam sem se preocuparem onde isso ia parar.
No começo, Neto e seus parceiros
apanhavam da polícia. Nas ruas, eram xingados e acusados de serem os
responsáveis pela imundície em que se encontrava a cidade. Resistiram e, aos
poucos, percebiam que algo diferente acontecia: já não eram invisíveis. A
muitos convenceram de que pôr as mãos em detritos não os contaminava, nem os
tornava lixo. Impuseram-se, reinventaram-se e fizeram a cidade reciclar seu
olhar sobre eles.
Tempos depois, uma das estantes de uma
biblioteca comunitária do bairro guardava um livro que falava de animais de
carga abandonados pelos donos em um lugar deserto. Bem ao lado, ficava outro: a
autobiografia de um homem que, depois de encontrar no lixo um livro, reescreveu
a história da cidade.
** Para Descarte foi também selecionado para publicação na Revista
Benfazeja.
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Olhar
Tráfico
O dia em que meus escritos já não eram meus
Olhar
Tráfico
O dia em que meus escritos já não eram meus
Texto tão poderoso quanto o ideal de transformação do/pelo livro.
ResponderExcluirValeu, Vitor. Que nossas escritas provoquem transformação, inclusive em nós mesmos.
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