segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Piano fim

Dó. Foi a nota inaugural a soar assim que caiu a primeira lágrima do seu rosto sobre a tecla do piano. E as notas se sucediam. E as lágrimas também. Ela sabia que seu suspiro derradeiro estava próximo, e que seria logo após o cessar da melodia que se iniciara. Afinal, foi com as próprias mãos que ela ligou o dispositivo da bomba às cordas do instrumento.

E foi se lembrando de que, quando ainda nem sabia que era gente, ouvia, do ventre da mãe, aquela delicada voz a cantarolar um sem fim de melodias, que, de tão singelas, lhe tocavam o prematuro coração, fazendo-o bater ainda mais rápido. Lembrou também que, ao vir à luz, seu choro soou como música para os ouvidos maternais. E que, a cada noite, adormecia nos braços daquela que lhe murmurava um infinito repertório de canções de ninar.

O tempo foi passando, quase que no mesmo compasso das cantigas de roda e das cirandas que as crianças, no meio da rua, repetiam em uníssono crescente. Ela até se esforçava para prender o tempo com as próprias mãos, mas ele fugia. Em suas pequeninas e frágeis mãos só conseguia segurar mesmo a escova de cabelo da mãe, enquanto, diante do espelho e a todo volume, fingia ser uma daquelas famosas cantoras da TV.

A menina que aparecia no espelho também se foi. No seu lugar, via-se uma mulher que era toda harmonia. Cansada daquelas adocicadas músicas de adolescente, decidiu dar um passo a frente e formar um dueto. Finalmente, encontrou sua segunda voz. E como eles se afinavam... e como era mágica a sintonia entre os dois...

Mas um dia o ritmo desanda... ou porque, mesmo estando juntos, já não queriam tocar as mesmas músicas ou porque outro instrumento teimava em entrar no meio canção. Era como se a voz de cada um deles, que até então casava perfeitamente, agora fosse dissonante. E assim, o melhor arranjo foi cada um seguir carreira solo. Para ela não foi fácil. Depois de tantos e tantos ensaios em conjunto, quem é feliz sendo uma nota só?

Soluçava em staccato, suspirava em bemol, murmurava em sustenido. Logo depois de uma pausa breve, sua voz aguda, de timbre inconfundível, voltava a romper o silêncio. E a sinfonia era só lamento. Seu pranto percorria todas as notas, de todas as escalas, passando por todas as oitavas. Parecia até que era da garganta que saía aquele som que se fazia ouvir por quem quer que fosse, atravessando paredes e portas que tentavam, sem sucesso, trancar seu segredo a sete claves.

Do seu canto, percebeu que o cansaço lhe forçava a pôr fim à canção. E tocou as últimas notas que lhe restavam para compor a música de sua vida. Compassadamente. Sem pensar em si. Era toda e somente: dó.

[…]

Bum.


* Este conto foi selecionado para publicação pelo Motus - Movimento Literário Digital #3.

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