quarta-feira, 3 de março de 2021

Beijos virtuais

É bem verdade que este sintoma já era perceptível antes mesmo da pandemia, mas não se pode negar que, com ela, o quadro se agravou. E agora eu, que não me lembro de já ter recebido uma carta com marca de batom da pessoa amada, tenho minhas redes sociais invadidas por beijos que nunca se concretizarão.
Sim, porque o mínimo que se esperava de alguém que finaliza uma conversa pela internet com “beijos”, no plural, é essa mesma pessoa, “ao vivo e a cores”, te dar pelo menos um desses beijos, nem que seja no singular.

Mas não: de parentes distantes a falsos amigos, tem gente (e não é pouca!) que me manda beijos virtuais, mas mal me cumprimenta pessoalmente. Sem falar naqueles que eu nunca vi nem verei em carne e osso na vida.

E a beijação digital a cada dia se reinventa: o que antes era “beijos”, como no dicionário, se desidratou e virou “bjs”. Devem ser selinhos abreviados, de tão rápido. Depois as letras deram lugar a símbolos e passamos a ganhar sequências de dois pontos, hífen e asterisco. Com o tempo, os beijoqueiros já nos enviavam os tais emojis.
E tem mais: esses emojis sofrem mutação igual a vírus de computador. Começou com a carinha amarela fazendo biquinho. Depois vieram as variações: piscando, com coração vermelho na boca, com olho aberto, olho fechado, com sobrancelha, com a bochecha rosada. Cada vez mais realista. Pra ser real mesmo só falta uma coisa: dar um beijo de verdade, daqueles que estalam e deixam resquício de umidade na pele do outro.

E para piorar ainda veio um tal de coronavírus empatar o corpo a corpo. Agora nada de beijo, nada de abraço. A dois metros de alguém o máximo que se consegue é um golpe de capoeira.

Por isso, decidi: vou aproveitar esses tempos de isolamento social e disseminar a torto e a direito meu carinho virtual: mas em vez de mandar beijos, vou dizer “sexo”, para ver se pessoalmente, passada esta pandemia, eu ganho pelo menos um aperto de mão.

* Esta crônica foi selecionada pelo I Concurso para seleção de textos literários dos dois primeiros volumes da Coleção: Literatura de Circunstâncias.

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