quarta-feira, 3 de março de 2021

Beijos virtuais

É bem verdade que este sintoma já era perceptível antes mesmo da pandemia, mas não se pode negar que, com ela, o quadro se agravou. E agora eu, que não me lembro de já ter recebido uma carta com marca de batom da pessoa amada, tenho minhas redes sociais invadidas por beijos que nunca se concretizarão.
Sim, porque o mínimo que se esperava de alguém que finaliza uma conversa pela internet com “beijos”, no plural, é essa mesma pessoa, “ao vivo e a cores”, te dar pelo menos um desses beijos, nem que seja no singular.

Mas não: de parentes distantes a falsos amigos, tem gente (e não é pouca!) que me manda beijos virtuais, mas mal me cumprimenta pessoalmente. Sem falar naqueles que eu nunca vi nem verei em carne e osso na vida.

E a beijação digital a cada dia se reinventa: o que antes era “beijos”, como no dicionário, se desidratou e virou “bjs”. Devem ser selinhos abreviados, de tão rápido. Depois as letras deram lugar a símbolos e passamos a ganhar sequências de dois pontos, hífen e asterisco. Com o tempo, os beijoqueiros já nos enviavam os tais emojis.
E tem mais: esses emojis sofrem mutação igual a vírus de computador. Começou com a carinha amarela fazendo biquinho. Depois vieram as variações: piscando, com coração vermelho na boca, com olho aberto, olho fechado, com sobrancelha, com a bochecha rosada. Cada vez mais realista. Pra ser real mesmo só falta uma coisa: dar um beijo de verdade, daqueles que estalam e deixam resquício de umidade na pele do outro.

E para piorar ainda veio um tal de coronavírus empatar o corpo a corpo. Agora nada de beijo, nada de abraço. A dois metros de alguém o máximo que se consegue é um golpe de capoeira.

Por isso, decidi: vou aproveitar esses tempos de isolamento social e disseminar a torto e a direito meu carinho virtual: mas em vez de mandar beijos, vou dizer “sexo”, para ver se pessoalmente, passada esta pandemia, eu ganho pelo menos um aperto de mão.

* Esta crônica foi selecionada pelo I Concurso para seleção de textos literários dos dois primeiros volumes da Coleção: Literatura de Circunstâncias.

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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Mergulharei no teu tacacá
até que a tua folha de jambu
deixe a minha língua dormente


* Este poema foi selecionado para a Antologia Jaçanã – Poética sobre as Águas, da Pará-grafo Editora.

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Sem Razão
Êxodo
Poema de sacanagem
Herança negra

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

A luta do povo de Santxiê contra o exército de concreto armado

Kamuu tira do pescoço o crachá de funcionário público e bate o ponto. Passa pela catraca na saída da repartição e, na esquina, pega o ônibus onde se lê Noroeste. Desabotoa o nó da gravata e, pela janela, vê o cinza do concreto curvilíneo do Plano Piloto se transformar, pouco a pouco, no verde queimado da vegetação rasteira e de arbustos retorcidos do cerrado, a disputar espaço com arranha-céus.

Em pouquíssimos minutos, solicita parada, desce e caminha alguns quilômetros, até chegar diante de um casal de ipês que, juntos, formam um portal verde. Kamuu tira os sapatos, pede permissão dos espíritos e, descalço, atravessa o portal, que o leva a outro universo. Do lado de lá, seus pés nus tocam o chão sagrado. Ele respira fundo, ouve o canto dos pássaros e sorri: está no Santuário dos Pajés.

Ali, onde não há reis ou presidentes, nada sobra ou falta, tampouco há por que se apressar, o tempo é suspenso: o presente anda de mãos com o passado e o futuro. Naquele lugar, colhe-se o que se planta, todos se olham nos olhos, e é possível enxergar o horizonte.

Kamuu nem dá o segundo passo sem ouvir os gritos eufóricos dos filhos, que correm em sua direção e o abraçam. Arrastam-no pelos braços e o levam até a fogueira, onde os demais o aguardam, enquanto entoam cantorias. Logo, passam-lhe o violão e ele toca canções que o fazem lembrar os irmãos que partiram. Os mais jovens registram tudo em fotos e vídeos e já postam na rede.

Entre uma música e outra, Kamuu conta a história do bravo guerreiro Santxiê, que lutou contra grandes inimigos para que pudessem repousar agora sobre aquela terra. A sensação é de que Santxiê está ali. E está mesmo! Kamuu o convida a se juntar à roda e as crianças pedem ao grande guerreiro que conte novamente sobre a batalha pelo Santuário.

Os olhos dos curumins não piscam. Ninguém quer perder um segundo dos passos do guerreiro que enfrentou espíritos funestos, gigantes de aço e exércitos de concreto armado.

Santxiê, então, conta que ele e os parentes, depois de muito caminhar, decidiram que ali seria seu refúgio, porque foi onde reencontraram o espírito dos ancestrais. No cerrado, a meia distância da capital de concreto em construção, podiam falar a própria língua, cantar como os antigos e dançar com os espíritos da natureza.

Foto: Mídia Ninja

A casa foi feita com uma grande abertura no teto, por onde era possível ver as estrelas e se comunicar com os parentes mais distantes. Ali viviam em festa.

Mas, um dia, o toré foi interrompido por um ronco misterioso e assustador. Os mais velhos procuravam acalmar as crianças e as levaram seguras para dentro de casa. Os primeiros raios da manhã mostraram uma grande clareira no campo e estranhas e enormes pegadas que não poderiam ser feitas por nenhum dos animais que eles conheciam.

Nos dias seguintes, começaram a brotar do chão estacas de madeira pelos arredores. Eles as arrancavam pela manhã, mas as estacas reapareceriam ao anoitecer.

O pior estava por vir. Passados uns dias, foram até eles criaturas sinistras, vestidas como se nevasse, acompanhadas por uma tropa de homens trajados todos iguais, feito robôs fabricados na mesma fôrma.

Deixaram uns papéis em que se liam ordens para que abandonassem aquelas terras, onde seria edificado o futuro. Na mesma hora, o povo de Santxiê disse que haviam criado raízes ali e, se arrancados do chão, morreriam. Estava declarada a guerra.

Começaram a chegar máquinas e máquinas a derrubar árvores centenárias e o que mais estivesse pela frente. O povo pintou-se de urucum e preparou o arco e flecha. Do outro lado, as armas cuspiam fogo. Os filhos do Santuário resistiam bravamente: à dor, à lagrima e ao medo. Mas não eram páreo para os monstros de metal e concreto, e suas garras de arame farpado.

Os inimigos davam a guerra por vencida, quando, de repente, viram aparecer mais e mais gente de várias tribos e todos os cantos. Não entendiam de onde vinha aquele povo. Mal sabiam eles que o mundo inteiro tomara conhecimento da ameaça que sofria o Santuário e muitos foram somar força.

A abertura no teto da casa mantinha-os em sintonia com outras espalhadas por diferentes partes do planeta. E era exatamente por aquela fenda que chegava a multidão de guerreiros.

De mãos dadas e peito aberto, atentos à voz de Santxiê, enfrentaram o exército inimigo. Não estavam sós. Eram muitos. Eram muito fortes. As máquinas viram nos olhos do povo a vida e a vontade de viver. Acuadas, partiram em fuga. Para festejar a vitória, o povo de Santxiê fez uma grande roda e dançou e dançou por horas e horas.

Depois de ouvir a história, Kamuu e os outros se levantam para celebrar a vida e também dançam de mãos dadas em volta da fogueira. É possível ler no rosto de todos a alegria por estarem ali.

— Mas devemos nos manter vigilantes — alerta Santxiê. — O inimigo está sempre à espreita. E a qualquer momento pode voltar.

A vontade é de ficar mais um pouco no calor da fogueira, mas todos entendem que é hora de se recolher, porque a lua também precisa dormir e dar lugar ao sol.

Kamuu olha o horizonte e agradece por mais aquele dia. Eles vão repousar. Sabem que, com os primeiros raios da manhã, precisarão atravessar o portal, como fazem a cada nascer do sol. Mas igualmente levam no peito a certeza de que, ao fim do dia, estarão todos reunidos em volta da fogueira.

* Este conto foi publicado na revista LiteraLivre (22ª ed.) e no livro “Vida sob as agruras da seca”.

** Clique aqui para ver o vídeo com a contação do conto “A luta do povo de Santxiê contra o exército de concreto armado”.


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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Profissional

Açougueiro, partia ossos como ninguém. Campeão de luta livre, sabia o lugar certo de golpear. Empregado doméstico, era hábil com martelos, furadeiras e alicates. Mas foi a experiência de costureiro que lhe garantiu o emprego de torturador: após a confissão, costurava, com destreza, a boca do delator. 

* Este microconto foi selecionado para publicação pelo Concurso Cultural "Covil da Discórdia" de Minicontos - 2ª edição.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Sem chão


Acordei sem ar. Tossi algumas vezes na tentativa de expelir toda aquela terra alojada nos meus pulmões. Saí dali sem olhar para trás. Andava nas ruas sem rumo, mas na esperança de me lembrar de meu endereço ou de que alguém me reconhecesse.

Eu não entendia por que todos me olhavam, mas, quando eu me aproximava, se afastavam, viravam a cara, faziam feição de nojo ou fingiam não me ver. Tudo aquilo era porque minhas vestes estavam sujas de terra?

Resolvi pedir informação a uma desconhecida na parada de ônibus. Distraída que estava, ao notar minha presença, ela gritou e correu. Novamente, eu estava só. E ainda sem lembrar onde morava.

Decidi voltar ao lugar onde acordara naquela manhã. Lá, passei pela entrada principal e pelos dormitórios enfileirados onde repousavam meus vizinhos temporários. Acima do lugar onde despertara naquele dia, vi uma cruz de madeira com o meu nome. Lembrei quem era e onde ficava minha casa.

Não demorei a chegar. Bati à porta e sorri, ao rever um rosto com feições que lembravam as minhas. Ela fechou a porta na minha cara, não sei se por não me reconhecer ou, exatamente porque, ao me reconhecer, sentiu vergonha de mim. E eu nem cogitara pedir a ela que me ajudasse a entender porque continuava atormentado por aquela sensação de que fora enterrado vivo.

Pela segunda vez no dia, voltei ao cemitério, mas não queria dormir de novo naquela mesma cova. Sentia a vida pulsar em mim como nunca. Do lado de fora, encontrei um homem deitado no chão. Sentei ali perto. Ele me ofereceu cachaça. Eu aceitei. Tinha frio.

— Sabia que aqui foi o único lugar de onde ninguém me expulsou? — confidenciou-me o meu mais novo melhor amigo.

Ali estava eu, acolhido por aquele desconhecido que pouco se importava com minhas roupas sujas e malcheirosas, ou mesmo com minha carne em estágio inicial de putrefação e larvas vivas a se alimentarem do meu rosto.

O amigo me ofereceu metade de seu cobertor imundo. Eu aceitei, agradeci e descansei em paz. Pelo menos, por aquela noite.

* Este conto foi selecionado para publicação pelo Concurso Cultural "Covil da Discórdia" de Minicontos - 2ª edição.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Mata


Quando era pequeno, sua mãe o embalava na rede, enquanto entoava uma canção de ninar que contava a história da Mãe do Mato: uma criatura que fazia pessoas que não eram bem-vindas se perderem na floresta. Ele dormia e acordava e, mesmo de olhos abertos, tinha pesadelos.

A Mãe do Mato não saía da sua cabeça. Celso cresceu e, com ele, o seu medo se transformou em repulsa: pela Mãe do Mato e por tudo aquilo que a ela se relacionasse. Diferente de seus pais, não queria ser lavrador. Foi para a capital e se tornou dono de uma madeireira.

Anos depois, pisava novamente naquelas terras. Voltara à cidade natal, a trabalho, para coordenar a derrubada de madeira de lei da melhor qualidade, recém-descoberta em mata fechada.

Partiram. Lá, Celso, de longe, observava o início dos trabalhos. Dava ordens e as via serem executadas. A equipe, pouco a pouco, adentrava a mata mais e mais. Até que já não era possível ouvi-los de onde Celso estava. Aquele silêncio era perturbador. Eles já estavam demorando muito e Celso resolveu procurá-los, para saber o que acontecia, antes que anoitecesse. Por segurança, entrou na mata com um motosserra nas mãos.

Não os encontrou. Caminhava, caminhava e parecia voltar sempre ao mesmo lugar. Já não sabia onde estava. Perdera-se. Ouviu um barulho, que parecia vir ali de perto, de alguém que se escondia entre as folhagens. Perguntou duas vezes “quem é?”, mas não obteve resposta. Foi quando viu, por trás das árvores, uma pessoa de cabelos ruivos compridos, encolhida, como se não quisesse ser vista. Mas se viram. E quando se viram, gritaram de susto, ao mesmo tempo. Passados alguns segundos, Celso tentou fazer contato:

— Quem é você?

A mulher não respondeu. Celso, então, se apresentou: disse quem era, de onde vinha, falou de seus pais e lembrou até a canção que sua mãe entoava para ele dormir.

Refeita do susto, a mulher, que estava em um vestido feito de um tecido incomum, disse, enigmática:

— Então, é você... — Celso olhou-a sem entender. Ela continuou: — Eu sempre soube que um dia nos encontraríamos. — Celso repetiu a pergunta:

— Mas quem é você?

— Eu tenho muitos nomes, mas você pode me chamar de Mãe do Mato.

Atônito, Celso nada dizia. Nem, ao menos, tinha certeza se podia levar aquela mulher a sério.

— Quando eu era criança — disse ela — minha mãe me contava histórias horrendas sobre um monstro sem coração que anda sobre duas pernas e assassina árvores, sem motivo. Ela dizia que, com suas máquinas de guerra, esse monstro derruba a casa de milhares de animais indefesos, provocando morte e dor. Eu sempre tive medo desse bicho, que minha mãe chamava de ser humano. Um dia, vi meu pesadelo virar realidade: minha casa foi destruída, meu mundo foi devastado, e ninguém me perguntou o que eu pensava nem me explicou o porquê de tudo aquilo. E, agora, vivo fugida, a me esconder atrás das poucas árvores que ainda restam.

Ao ouvir aquelas palavras, Celso chorou e largou o motosserra no chão. Já não tinha medo da Mãe do Mato. E nem ela, dele. Celso prometeu que nunca mais a faria mal. Em retribuição, ela o ajudou a encontrar o seu caminho. Não estava mais perdido. Depois dali, fechou a empresa. Já não via sentido em tratores e motosserras. Naquele ano, prestou vestibular para Gestão Ambiental.

* Este conto foi selecionado para publicação nas revistas Recorte Lírico (2ª ed.) e LiteraLivre (nov./dez. 2019).


segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Memórias de natal


O ano é 3025 d.C. Não sei exatamente o que isso significa. Alguém, certa vez, me disse que somos a geração sem memória. Nem lembro mais por quê. Talvez seja o excesso de informação.

É véspera de natal. Não há enfeites nos prédios, na frente das casas, nem nas árvores. Aliás, árvores restam poucas pela cidade. As ruas estão desertas. Não é por menos. Ruas são lugares perigosos. Por isso, é proibido permanecer nelas. Por aqui, ficam somente aqueles de muita coragem ou que muito necessitam. Este é o meu caso. Meu nome é Nicolau. Uma homenagem ao meu avô, o último Papai Noel de shopping da família.

Com o avanço da tecnologia, as pessoas deixaram de ir aos lugares fazer compras. As compras passaram a ir até elas. Os shoppings ficaram obsoletos e vô Nicolau perdeu o emprego. Minha avó, com quem fui criado, dizia que as crianças já não acreditavam em Papai Noel, o que acabou com o espírito do natal. Até hoje, não entendo o que ela quis dizer com isso. Afinal, as pessoas continuam a gastar muito nas festas de fim de ano, como sempre foi.

Meu sonho era ser médico, mas não passo de um andarilho, a perambular pelas ruas, vestido com a antiga fantasia de Papai Noel do meu avô. Minha vida é pedir moedas dos poucos que encontro pelo caminho.

Algo me diz que hoje será um dia incomum. Talvez por causa da manifestação que, pelo que ouvi dizer, será aqui na Praça Central. Motivos para protestos sobram, mas há também muito medo do que possa acontecer a quem deles participe.

De repente, a praça fica lotada. A maioria parece ser de jovens, que cobrem o rosto com máscaras de LED. A tropa de choque chega logo em seguida. Cada soldado na sua nave. Há uma gritaria geral, seguida de tumulto, empurra-empurra e correria. A tropa joga água salinizada na multidão e aciona o dispositivo de choque. A maioria cai desmaiada. Alguns conseguem fugir. Terminado o trabalho, a tropa parte em revoada.

Aproximo-me dos feridos, para ver como posso ajudar. Meu Deus! Entre eles há uma grávida! A jovem de pele negra e olhar determinado reclama de fortes dores. Com a ajuda de um homem de barba e cabelos grisalhos, pego-a no colo e a levo a um lugar seguro perto dali. À sombra de uma árvore, forro o chão com a bandeira lilás que a jovem trazia na mão direita.

— O que você estava fazendo, grávida, naquela manifestação? — questiono-a.

— Era necessário — responde ela.

Penso em dizer que nunca vira em alguém tamanha loucura, mas digo ‘coragem’.

— Não há mais tempo para conversa. Ela está em trabalho de parto — interrompe-nos o ancião, pelas mãos de quem o bebê viria ao mundo, minutos depois.

O homem confidencia-nos que aprendera com a mãe, viúva, a fazer partos. Ela era uma mulher forte que, além de ajudar crianças a nascerem, dedicava a vida a tratar enfermidades dos desenganados que a procuravam.

— Qual o seu nome, menina? — pergunta o ancião.

— Maria — ela responde.

— Parabéns, Maria. Bendito é o teu filho! — diz o homem, ao envolver o menino na faixa em que se lia ‘Pelos direitos das mulheres’. Ao olhar Maria nos olhos, o ancião diz que ela lembra outra mulher de muita coragem, e nos conta uma história que me parece tão familiar, apesar de nunca tê-la ouvido.

Fala-nos de uma jovem também chamada Maria, que vivera há muito tempo bem longe dali. Ela estava noiva quando foi chamada para ser a mãe do filho de Deus, aquele que, ao ouvir o clamor do seu povo oprimido, desceria do céu para libertá-lo. Maria sabia que aquilo era arriscado. Temia chorar as dores de ver o filho morto por desafiar os interesses dos poderosos. Antes ainda, corria o risco de ser apontada nas ruas como mãe solteira e ser apedrejada até a morte, por trazer no ventre um filho fora do casamento. Mesmo assim, aceitou a missão.

O noivo de Maria era um homem bom e a amava muito. Não deixaria que o pior lha acontecesse. Aceitou a noiva e o filho que ela trazia no ventre.

Por conta de um governo tirano, mesmo com Maria grávida, foram obrigados a deixar a própria casa. Como retirantes, sem lugar para repousar a cabeça, Maria deu à luz. O menino foi visitado por humildes trabalhadores das redondezas e gente vinda de longe, que era acusada de feitiçaria por olhar as estrelas e prever o futuro.

Anos mais tarde, aquele menino mudaria para sempre os rumos da História. Daria a maior prova de amor à humanidade e uma grande lição a todos nós: amar uns aos outros como ele nos amou.

Ao ouvir aquelas palavras, a jovem Maria e eu, ali debaixo da sombra daquela árvore, sentimos arder nosso coração. Da minha parte, por achar que a história não poderia cair no esquecimento, resolvi levá-la, aonde quer que eu fosse, a quem precisasse dela.

Agradecida, a jovem Maria resolveu dar ao recém-nascido o nome daquele que salvara a vida de seu filho.

— Como se chama, bom homem? — perguntou ela ao ancião. Com um olhar que nos inspirava, ele respondeu com mansidão:

— Eu sou... Jesus.


* Este conto foi selecionado para publicação na antologia Mirage 2.


segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Passado

Um homem de terno olha o relógio, no lado externo de uma sorveteria. Outro, de roupa de academia, passa ao lado. Para, franze a testa e se vira para o primeiro.

— Caralho, Marcão! Quanto tempo, bicho. Todo na beca! Nem parece aquele loucão que pegava as menininhas nas festas.

O homem de terno olha para trás e, depois, de volta para o interlocutor.

— Você está falando comigo?

— Porra, Marcão! Claro. Lembra não? A gente apostava quem se dava melhor, mas tu sempre se superava. Cara, tu pegou até a dona do puteiro. Tu é foda mermo!

— Eu?!

— É, Marcão. Agora vem dar uma de santinho? Pra cima de mim, pô?! Deixa disso.

— Tem certeza que não está me confundindo? — pergunta, enquanto o outro mexe no celular.

— Ei, vamo tirar uma selfie? Não posso perder essa oportunidade de impressionar a galera daquela época. Marcão, Marcão, o terror das xoxotas. Ê, bagaceira! — fala, dando um soco de leve no braço do outro. — A gente tem um grupo, sabia? Por que você não tá? Tá todo mundo lá, pô: o Pedrão, o Serjão, o Paulão — diz, contando nos dedos. Depois, fica ao lado do interlocutor e tira foto, mostrando os músculos para a câmera. — Mas o quê que aconteceu mermo, Marcão! Tu tá muito certinho, pô. Virou pastor, foi?

— De modo algum, meu caro — responde, enquanto um terceiro chega e lhe dá um selinho.

O outro se afasta do casal.

— Oi, amor. Desculpa o atraso — fala e olha para o homem de regata. — Quem é? De longe, pareceu ser um amigo de longa data.

O homem de terno faz menção de responder, mas é interrompido pelo outro.

— Não, não. Eu só ia pedir uma informação: se eu pegar essa rua e ir direto, eu vou dar onde mermo?

* Este conto foi selecionado para publicação na antologia Mnemephile.

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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Piano fim

Dó. Foi a nota inaugural a soar assim que caiu a primeira lágrima do seu rosto sobre a tecla do piano. E as notas se sucediam. E as lágrimas também. Ela sabia que seu suspiro derradeiro estava próximo, e que seria logo após o cessar da melodia que se iniciara. Afinal, foi com as próprias mãos que ela ligou o dispositivo da bomba às cordas do instrumento.

E foi se lembrando de que, quando ainda nem sabia que era gente, ouvia, do ventre da mãe, aquela delicada voz a cantarolar um sem fim de melodias, que, de tão singelas, lhe tocavam o prematuro coração, fazendo-o bater ainda mais rápido. Lembrou também que, ao vir à luz, seu choro soou como música para os ouvidos maternais. E que, a cada noite, adormecia nos braços daquela que lhe murmurava um infinito repertório de canções de ninar.

O tempo foi passando, quase que no mesmo compasso das cantigas de roda e das cirandas que as crianças, no meio da rua, repetiam em uníssono crescente. Ela até se esforçava para prender o tempo com as próprias mãos, mas ele fugia. Em suas pequeninas e frágeis mãos só conseguia segurar mesmo a escova de cabelo da mãe, enquanto, diante do espelho e a todo volume, fingia ser uma daquelas famosas cantoras da TV.

A menina que aparecia no espelho também se foi. No seu lugar, via-se uma mulher que era toda harmonia. Cansada daquelas adocicadas músicas de adolescente, decidiu dar um passo a frente e formar um dueto. Finalmente, encontrou sua segunda voz. E como eles se afinavam... e como era mágica a sintonia entre os dois...

Mas um dia o ritmo desanda... ou porque, mesmo estando juntos, já não queriam tocar as mesmas músicas ou porque outro instrumento teimava em entrar no meio canção. Era como se a voz de cada um deles, que até então casava perfeitamente, agora fosse dissonante. E assim, o melhor arranjo foi cada um seguir carreira solo. Para ela não foi fácil. Depois de tantos e tantos ensaios em conjunto, quem é feliz sendo uma nota só?

Soluçava em staccato, suspirava em bemol, murmurava em sustenido. Logo depois de uma pausa breve, sua voz aguda, de timbre inconfundível, voltava a romper o silêncio. E a sinfonia era só lamento. Seu pranto percorria todas as notas, de todas as escalas, passando por todas as oitavas. Parecia até que era da garganta que saía aquele som que se fazia ouvir por quem quer que fosse, atravessando paredes e portas que tentavam, sem sucesso, trancar seu segredo a sete claves.

Do seu canto, percebeu que o cansaço lhe forçava a pôr fim à canção. E tocou as últimas notas que lhe restavam para compor a música de sua vida. Compassadamente. Sem pensar em si. Era toda e somente: dó.

[…]

Bum.


* Este conto foi selecionado para publicação pelo Motus - Movimento Literário Digital #3.

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quarta-feira, 25 de setembro de 2019

No meio do caminho, uma árvore

No meio do caminho tinha uma árvore. E a alguns metros dali, naquela mesma rua, tinha outra árvore no meio do caminho. Na ruela, calçada com paralelepípedo, as duas mangueiras ocupam a maior parte da via e os carros não passam em alta velocidade. A sombra das árvores vira estacionamento para os carros e abrigo para as famílias. Os vizinhos levam as cadeiras de casa para o meio da rua e passam horas jogando conversa fora. Debaixo das mangueiras, as crianças preferem brincar.

Foto: Dione Sampaio/FolhaWeb
Quem passeia por Boa Vista pode encontrar outras árvores no meio da rua. Do outro lado da cidade, a mangueira da Ataíde Teive exige que a avenida desvie o seu trajeto, fazendo uma leve curva à direita e à esquerda do canteiro, em forma de losango, construído em volta da árvore. A mangueira presenciou o crescimento da cidade, nas últimas décadas. A árvore cresceu. E Boa Vista cresceu em volta. 

As árvores no meio da rua lembram-nos que estamos na Amazônia, onde os imensos rios, ao passarem por dentro da mata fechada, desviam do que encontram pelo caminho, dando ao seu curso um sinuoso desenho. É como se a natureza vencesse o progresso e a vida seguisse o seu destino. 

* Esta crônica foi selecionada para publicação pela Jornada Literária 2017.

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segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Feito cães e gatos


Desde que o mundo é mundo, cães são cães e gatos são gatos. E cães caçam gatos e gatos fogem de cães. Mas uma verdade que muitos enterram na areia é que existem gatos, e não são poucos, que querem ser cachorros. E de tudo fariam para sê-lo.

Acontece que cães não são de aceitar gatos no clube. Mesmo assim, um grupo de felinos resolveu enfrentar as feras e não saiu em fuga com o rabo entre as pernas diante do primeiro 'não' ou mesmo da primeira rosnada.

Ao mostrar terem garra e serem bichos de raça, os tais gatos ganharam o direito de sonhar com a possibilidade de entrarem para a matilha. Não da noite pro dia; e nem de qualquer jeito. Eles seriam submetidos a provas.

Acordo feito, começaram os primeiros desafios: em poucos dias, os gatos deixaram de miar, se lamber e se esfregar nos humanos; aprenderam a latir, rosnar e atacar em bando. Mas entrar para a gangue não seria tão fácil. Eles teriam que fazer bem mais que mostrar os caninos afiados.

A cada dia, vinham testes mais e mais difíceis e perigosos. Um a um eram superados; e a vitória, festejada aos uivos. A última comemoração foi breve, logo interrompida pelo aviso de que aquela não era a prova final. A prova de fogo estava por vir e foi solenemente anunciada: para serem definitivamente aceitos no bando, eles deveriam fazer mais que imitar cães: tinham que agir e pensar como cães. O grande teste a eles imposto foi o de se voltar contra os próprios pares e, feito cães, caçar, ferir e matar outros gatos.

O susto com a notícia foi grande. Não foi fácil renegar a própria raça, mas eles já tinham ido muito longe pra desistir de tudo. Já que chegaram até ali, resolveram seguir em frente.

No começo, doeu um pouco neles, mas doeu muito mais na carne de suas vítimas: pobres gatos e gatas caçados, feridos e mortos. Os bravos gatos estavam definitivamente aprovados. Entraram para a matilha.

O tempo passou e os gatos-cães se multiplicaram e se tornaram maioria no bando. Aliás, passaram a dar as ordens. Já nem pareciam gatos. No comando, viram os cães se extinguirem. Para a alegria dos felinos, pensavam alguns, cansados de caçadas, ferimentos e mortes.

Mas não foi bem isso que aconteceu. Com o fim dos cachorros, os gatos-cães continuaram a caçar, ferir e matar gatos. Já não eram mais gatos que agiam feito cães. Agora, eles eram cães.

* Este conto foi selecionado para publicação pelo IX Concursos de Contos do Grupo Livrarias Curitiba e na revista LiteraLivre (16ª ed.).

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terça-feira, 17 de julho de 2018

Teu futuro te condena


— Serás um assassino — dir-te-ei, recém-nascido, quando teus pais te trouxerem até mim. 

Lerei teu futuro, como o de todos os paridos naquela hedionda cidade, em uma porção do meu sangue. Descreverei em detalhes a teus genitores que, com um instrumento perfurocortante de fabricação caseira, vazarás os olhos de uma mulher de cabelos brancos e dela cortarás o pescoço. Ainda permanecerás ao seu lado, vendo-a sangrar em silêncio até a morte. 



Minha profecia arregalará os olhos de tua mãe e teu pai, que me questionarão como tal infortúnio seria possível. Passarão noites em claro, ao som do teu renitente choro. Praguejarão contra ti e contra Deus e questionarão a Ele que fizeram para merecer tamanha maldição.

Serás repulsivo aos teus pais, que, envergonhados de trazerem ao mundo um monstro, o abandonarão em lugar ermo qualquer. Tua sorte, ou não, será ser encontrado por uma família de operários, que encontrarão entre os panos em ti envoltos um bilhete onde se lerá tua condenação.

Aceitar-te-ão entre eles, titubeantes em crer naquelas palavras malditas e mal escritas. Seu pavor por ti perseguir-te-á enquanto dividirem o mesmo teto. Temerão a cada dia e a cada noite que a criatura diabólica que em ti habite enfim acorde.

Não suportarás viver sob eterna desconfiança e partirás para longe daqueles que nunca estiveram contigo. Procurarás abrigo nos mais distintos lugares, todavia em nenhum deles serás bem vindo. Por toda a cidade, saberão tua fama. E ninguém poderá ser condenado por não acolher criatura capaz de, no futuro, cometer ato tão abominável.

Ainda tentarás frequentar os bancos escolares, mas não te verão com bons olhos, nem os professores, tampouco teus colegas. Pelos corredores, serás objeto dos mais violentos trotes, em represália ao crime que, certamente, estarás por empreender. Nesses e em outros tantos momentos, perguntar-te-ás como poderias ser castigado por delito que ainda nem terás cometido.

Ao procurares trabalho, fechar-te-ão as portas. Os patrões temerão não só por sua segurança e de seus empregados, como também serem acusados de bandidos defensores de outro bandido. De certo, receariam a falência, ou pelo boicote dos consumidores ou por greve geral dos funcionários, indignados a serem obrigados a conviver com um assassino.

Nem as ruas restar-te-ão. Nelas, estarás eternamente abandonado pela sorte, sob o risco de acordar com o corpo em chamas, diante da multidão de sangue nos olhos.

Sem alternativa, ficarás às margens da cidade e viverás sob a proteção das sombras. Lá, encontrarás outros marginais. E até por eles serás rechaçado. Na melhor das hipóteses, tolerado. De tempos em tempos, serás sorteado como bode expiatório em que o bando descarregará todo o ódio que por eles a sociedade sentir.

E, assim, sempre que um novo crime ocorrer, ele te será atribuído. Em uma dessas vezes, uma garota de olhar doce e cabelos dourados e encaracolados será dada como desaparecida. Teus conterrâneos, convictos de tua culpa, procurar-te-ão, sedentos por justiça.

Apedrejarão e incendiarão o teu casebre, com o teu nome dito em coro, aos berros. Capturar-te-ão e anunciarão a tua sentença. Mas antes de morreres, a polícia chegará e te poupará do golpe fatal, menos por acreditar na tua inocência e mais pelo dever do ofício.

Mesmo atrás das grades, não estarás seguro. Serás torturado por longas horas pelos carcereiros. Temendo que a população volte à tua procura para terminar o que a polícia terá interrompido, renderás o plantonista e te evadirás do local.

Teu instinto levar-te-á ao bairro onde nasceste. Entrarás naquela tenda e a mulher de cabelos brancos, de costas, esperar-te-á, sentada, em uma cadeira de balanço.

— Peço que sejas rápido — dirá a mulher.

Aproximar-te-á dela e, com uma faca rudimentar, a ferirá em seus olhos. Em seguida, golpearás com o mesmo instrumento sua garganta. Em silêncio, até a morte, ela sangrará diante das tuas vistas. Se pudesse falar, dir-te-ia ela: “Não te condeno. Sei que, não por acaso, quiseste cegar meus olhos e calar minha voz. Ora, foi a partir deles que começou tua desgraça. Por causa do que vi e disse é que te tornaste o que és. E agora, tua sina está cumprida: és um assassino, como previ.”

* Este conto foi selecionado para publicação na Antologia Sombria. Para adquirir o livro completo, com histórias de vários autores, clique aqui.

** Este e outros contos estão na obra Livrinho da Silva. Para aquirir o livro, clique aqui.


Sobre o processo de criação deste conto, leia

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terça-feira, 10 de julho de 2018

Espreme que sai sangue

Ora, senhoras e senhores, de uma vez por todas está resolvido o problema no estoque no Hemocentro. Não há mais com o que se preocupar. É sangue de todo tipo. É O, é B, é A. Pensamento positivo, seja o fator RH positivo ou negativo. Quando for preciso, vai ter sangue na veia. E a solução, afinal, vem do jornal. 


Esqueçam as campanhas de sensibilização. Natal, Semana Santa, Carnaval. Doação de sangue em massa é coisa que já não se faz. O sangue que vai abastecer agora de forma permanente o Hemocentro vem da página policial dos jornais. Hemácias, plaquetas e glóbulos brancos. O jornal é fonte inesgotável. E fontes não faltarão. Os jornais vão doar-se até a última gota e vão cumprir até o fim o seu papel social. 

Que importa o que está escrito? O importante é que nas veias dos pacientes vai correr o sangue do jornal, misturado com a tinta da impressão. E a cada edição, há que se comemorar pelo papel que vai jorrar sangue e informação. E a morte no jornal vai salvar vidas. E outras vidas continuarão a fazê-lo amanhã. 

Viva as poças de sangue no asfalto! Viva os mortos na primeira página! Por acidente, publicaram uma matéria na semana passada em que o trânsito de tão tranqüilo só matou quatro. Mas fiquem calmos, senhores leitores, por que o Hemocentro não precisa mais de doadores. E o sangue todo, quem diria, vai sair do jornal. 

Cabeças podem rolar. Membros podem partir. Mas uma coisa é certa: ninguém vai morrer por falta de sangue. Vida longa ao jornal! Vida longa à página policial! Que morram as árvores para dar a luz ao papel! Afinal, árvores não sangram e muito menos sabem ler. Mas as pessoas sabem muito bem o que fazer: jornal. 

* Esta crônica foi publicada originalmente no livro Retalhos, organizado por Aroldo Pinheiro.

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quarta-feira, 4 de julho de 2018

Dr. Google

Sabe aqueles dias em que acordamos com uma incômoda dor de cabeça, sem ter a mínima ideia de onde ela veio nem quando vai embora? Pois é. Foi assim comigo. O nosso primeiro pensamento é tomar um analgésico, mas fui prudente e resolvi consultar o Dr. Google. Sim, liguei o computador, abri o site de buscas e digitei meus sintomas. 




Apareceram tantas milhões de páginas que se eu fosse ler uma por uma morreria de velhice antes de encontrar cura. Fui o mais específico possível na nova pesquisa. Com menos resultados, resolvi consultar os do topo da lista. 

Na primeira página, eu me apavorei ao descobrir que estava com um câncer no cérebro e os dias contados. Fechei a página antes de chegar ao fim do primeiro parágrafo. Na segunda, fui informado que não era tão grave, mas que eu precisava fazer um tratamento com remédios controlados, prescritos por um neurologista. Resolvi buscar uma terceira opinião: a página orientava-me a fazer tratamento ortodôntico. Afinal, tratava-se de uma disfunção provocada pelo mau posicionamento da minha arcada dentária. 

Com três diagnósticos diferentes, decidi procurar um médico de carne e osso. Quem sabe ele desempataria o pleito, com seu voto de minerva? Ele perguntou como eu me sentia. Eu pensei em dizer "confuso", mas achei mais sensato relatar os sintomas que me afligiam a saúde e me levavam a estar ali. 

Ele me examinou: pareceu olhar meus olhos, meus ouvidos, minha garganta, meus batimentos e mais um monte de coisas que eu nem faço ideia. Perguntou também sobre meus hábitos, histórico de doenças na família e tantas outras coisas que até parecia se tratar de uma investigação criminal em que eu era o principal suspeito. 

No fim, ele disse que estava tudo bem comigo e que a causa provável da minha dor de cabeça era o excesso de horas que eu passava diante do computador. Era vista cansada. Eu deveria repousar, evitar preocupações e fazer atividades prazerosas. Aliviado, mostrei-me agradecido ao médico. Antes de sair, ele me perguntou quem o havia indicado para mim. Eu disse que ninguém específico. 

— Como você me encontrou, então? 

— No Google, doutor! 

* Este e outros contos estão na obra Livrinho da Silva. Para aquirir o livro, clique aqui.

** Este conto foi selecionado para publicação pelo Concurso Literário Internacional da Casa do Poeta Brasileiro de Praia Grande 2015.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Feito um conto de fadas

Era uma vez, num lugar não muito distante daqui, uma linda jovem com nome de princesa, igual a tantas outras. Sua pele não era clara como a neve, seus cabelos não lembravam cachinhos dourados, tampouco usava capuz na cabeça. Sempre avoada, a jovem parecia viver num conto de fadas. 

Desde pequena, sonhava com o príncipe encantado. Certa vez, avistou-o no horizonte, vindo em sua direção, montado num cavalo branco. O príncipe aproximou-se e desceu do cavalo. Beijou-lhe a mão como um cavalheiro e, antes de se abaixar para pegar o lenço que caíra da mão dela, desapareceu de relance. Ali, viu seu castelo se desfazer. Sentiu-se perdida como João e Maria. Foi quando acordou do sonho. 

Ainda sonolenta, dirigiu-se até o banheiro. Lá, olhou-se no espelho e viu o rosto de uma mulher que aparentava ter vivido pelos menos cem anos. Perguntou ao espelho sobre sua beleza, mas ele não respondeu. A jovem desejava a ajuda de uma fada madrinha ou, ao menos, de uma bruxa que lhe desse uma maçã envenenada, para pôr fim àquela história. Mas a única coisa que conseguiu, depois de soltar um grito de desespero, foi acordar daquele pesadelo. 

Acordou e olhou em volta. Ao seu lado dormia um desconhecido. Era seu marido. Teve medo de tentar acordá-lo com um beijo e transformá-lo num sapo ou num patinho feio. O relógio marcava meia-noite. Foi quando a magia se desfez. 

Acordou novamente, agora sozinha sobre a cama. Do lado de fora da casa, uma voz a chamava pelo nome. Ela foi até a sacada. Pensou que, se fosse seu amado e ela tivesse tranças, as jogaria para ele. Olhou pela janela e não viu ninguém. Não era dali que vinha a voz. Correu até a porta. Abriu-a e lá estava ele. Não era o lobo mau. Era o homem que amava e que a amava. Ele trazia nas mãos uma argola de metal, que se encaixou perfeitamente no dedo anelar da mão direita dela, como o sapato de cristal de Cinderela. Da boca dele, ela ouviu estas palavras: 

— Confie em mim. Não sei se viveremos felizes para sempre, mas viveremos felizes. 


* Este e outros contos estão na obra Livrinho da Silva. Para aquirir o livro, clique aqui.

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terça-feira, 22 de maio de 2018

Sorte Grande

Nunca fui homem de sorte, ainda que tentasse. Toda semana era sagrado: eu tava lá, fazendo minha fezinha. Comecei com jogo do bicho: tentava o leão e era vaca na cabeça; ia pro pavão e dava zebra. 

Larguei os bichos, mas fiquei com os cavalos de corrida: arriscava no azarão, ganhava o favorito; apostava no invicto, vencia o estreante. 

Abandonei os cavalos e procurei os cassinos: no caça-níquel, achei que encontraria maré de sorte, e nada. Apostei minhas fichas na roleta e fiquei rodado. Tentei minha última cartada e saí de mãos abanando. 

Desesperado, parti pro tudo ou nada: joguei na sena, megasena, telesena; apostei no Ayrton Senna e perdi. 

Uma hora, eu já frequentava até bingo de igreja, não fugia nem de par ou ímpar e se, alguém me punha à prova, eu peitava: “Quer apostar?” 

Só sei que, nessa aí, tudo o que eu ganhei foi prejuízo. Percebi que precisava virar o jogo. E desse dia em diante, minha sorte mudou. Parei de fazer apostas. E agora toda vez que não jogo, ganho: o dinheiro que deixo de gastar. Com isso, já fiz uma bela grana. Fala a verdade: isso é ou não é tirar a sorte grande?