quarta-feira, 3 de junho de 2020

Profissional

Açougueiro, partia ossos como ninguém. Campeão de luta livre, sabia o lugar certo de golpear. Empregado doméstico, era hábil com martelos, furadeiras e alicates. Mas foi a experiência de costureiro que lhe garantiu o emprego de torturador: após a confissão, costurava, com destreza, a boca do delator. 

* Este microconto foi selecionado para publicação pelo Concurso Cultural "Covil da Discórdia" de Minicontos - 2ª edição.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Sem chão


Acordei sem ar. Tossi algumas vezes na tentativa de expelir toda aquela terra alojada nos meus pulmões. Saí dali sem olhar para trás. Andava nas ruas sem rumo, mas na esperança de me lembrar de meu endereço ou de que alguém me reconhecesse.

Eu não entendia por que todos me olhavam, mas, quando eu me aproximava, se afastavam, viravam a cara, faziam feição de nojo ou fingiam não me ver. Tudo aquilo era porque minhas vestes estavam sujas de terra?

Resolvi pedir informação a uma desconhecida na parada de ônibus. Distraída que estava, ao notar minha presença, ela gritou e correu. Novamente, eu estava só. E ainda sem lembrar onde morava.

Decidi voltar ao lugar onde acordara naquela manhã. Lá, passei pela entrada principal e pelos dormitórios enfileirados onde repousavam meus vizinhos temporários. Acima do lugar onde despertara naquele dia, vi uma cruz de madeira com o meu nome. Lembrei quem era e onde ficava minha casa.

Não demorei a chegar. Bati à porta e sorri, ao rever um rosto com feições que lembravam as minhas. Ela fechou a porta na minha cara, não sei se por não me reconhecer ou, exatamente porque, ao me reconhecer, sentiu vergonha de mim. E eu nem cogitara pedir a ela que me ajudasse a entender porque continuava atormentado por aquela sensação de que fora enterrado vivo.

Pela segunda vez no dia, voltei ao cemitério, mas não queria dormir de novo naquela mesma cova. Sentia a vida pulsar em mim como nunca. Do lado de fora, encontrei um homem deitado no chão. Sentei ali perto. Ele me ofereceu cachaça. Eu aceitei. Tinha frio.

— Sabia que aqui foi o único lugar de onde ninguém me expulsou? — confidenciou-me o meu mais novo melhor amigo.

Ali estava eu, acolhido por aquele desconhecido que pouco se importava com minhas roupas sujas e malcheirosas, ou mesmo com minha carne em estágio inicial de putrefação e larvas vivas a se alimentarem do meu rosto.

O amigo me ofereceu metade de seu cobertor imundo. Eu aceitei, agradeci e descansei em paz. Pelo menos, por aquela noite.

* Este conto foi selecionado para publicação pelo Concurso Cultural "Covil da Discórdia" de Minicontos - 2ª edição.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Mata


Quando era pequeno, sua mãe o embalava na rede, enquanto entoava uma canção de ninar que contava a história da Mãe do Mato: uma criatura que fazia pessoas que não eram bem-vindas se perderem na floresta. Ele dormia e acordava e, mesmo de olhos abertos, tinha pesadelos.

A Mãe do Mato não saía da sua cabeça. Celso cresceu e, com ele, o seu medo se transformou em repulsa: pela Mãe do Mato e por tudo aquilo que a ela se relacionasse. Diferente de seus pais, não queria ser lavrador. Foi para a capital e se tornou dono de uma madeireira.

Anos depois, pisava novamente naquelas terras. Voltara à cidade natal, a trabalho, para coordenar a derrubada de madeira de lei da melhor qualidade, recém-descoberta em mata fechada.

Partiram. Lá, Celso, de longe, observava o início dos trabalhos. Dava ordens e as via serem executadas. A equipe, pouco a pouco, adentrava a mata mais e mais. Até que já não era possível ouvi-los de onde Celso estava. Aquele silêncio era perturbador. Eles já estavam demorando muito e Celso resolveu procurá-los, para saber o que acontecia, antes que anoitecesse. Por segurança, entrou na mata com um motosserra nas mãos.

Não os encontrou. Caminhava, caminhava e parecia voltar sempre ao mesmo lugar. Já não sabia onde estava. Perdera-se. Ouviu um barulho, que parecia vir ali de perto, de alguém que se escondia entre as folhagens. Perguntou duas vezes “quem é?”, mas não obteve resposta. Foi quando viu, por trás das árvores, uma pessoa de cabelos ruivos compridos, encolhida, como se não quisesse ser vista. Mas se viram. E quando se viram, gritaram de susto, ao mesmo tempo. Passados alguns segundos, Celso tentou fazer contato:

— Quem é você?

A mulher não respondeu. Celso, então, se apresentou: disse quem era, de onde vinha, falou de seus pais e lembrou até a canção que sua mãe entoava para ele dormir.

Refeita do susto, a mulher, que estava em um vestido feito de um tecido incomum, disse, enigmática:

— Então, é você... — Celso olhou-a sem entender. Ela continuou: — Eu sempre soube que um dia nos encontraríamos. — Celso repetiu a pergunta:

— Mas quem é você?

— Eu tenho muitos nomes, mas você pode me chamar de Mãe do Mato.

Atônito, Celso nada dizia. Nem, ao menos, tinha certeza se podia levar aquela mulher a sério.

— Quando eu era criança — disse ela — minha mãe me contava histórias horrendas sobre um monstro sem coração que anda sobre duas pernas e assassina árvores, sem motivo. Ela dizia que, com suas máquinas de guerra, esse monstro derruba a casa de milhares de animais indefesos, provocando morte e dor. Eu sempre tive medo desse bicho, que minha mãe chamava de ser humano. Um dia, vi meu pesadelo virar realidade: minha casa foi destruída, meu mundo foi devastado, e ninguém me perguntou o que eu pensava nem me explicou o porquê de tudo aquilo. E, agora, vivo fugida, a me esconder atrás das poucas árvores que ainda restam.

Ao ouvir aquelas palavras, Celso chorou e largou o motosserra no chão. Já não tinha medo da Mãe do Mato. E nem ela, dele. Celso prometeu que nunca mais a faria mal. Em retribuição, ela o ajudou a encontrar o seu caminho. Não estava mais perdido. Depois dali, fechou a empresa. Já não via sentido em tratores e motosserras. Naquele ano, prestou vestibular para Gestão Ambiental.

* Este conto foi selecionado para publicação nas revistas Recorte Lírico (2ª ed.) e LiteraLivre (nov./dez. 2019).