Eles andavam nus. Sempre andaram. E nada
de errado viam nisso. Olhar o corpo nu do outro era tão corriqueiro e puro como
contemplar o pôr do sol ou responder a um sorriso com outro.
Naquele povoado, não havia escrita, não
havia papel. Tudo que aprendiam registravam no próprio corpo. Tatuavam na pele
sinais de fácil compreensão. E aprendiam uns com os outros pelo olhar. Os
corpos nus eram como livros abertos, prontos para serem lidos. Assim, tudo era
partilhado e nenhum saber se perdia.
Quando alguém morria, repetia-se o
ritual. O corpo era exposto na praça central e todo o povoado se reunia para
ver. Passavam dias e dias olhando o corpo exposto, até terem certeza de que
nenhum sinal tatuado passara despercebido por ninguém. Em seguida, cobriam todo
o corpo com fibras de uma árvore e o enterravam onde não pudesse ser visto.
Depois de uma vida inteira, sua missão estava cumprida.
Com o tempo, o inevitável contato com
outros povos aconteceu. Um deles em especial, que se instalou pelas redondezas,
cobria-se dos pés à cabeça. Não se olhavam nos olhos. Aliás, não se olhavam.
Acreditavam que todo olhar era invasivo e, por isso, deveria ser evitado.
Pouco a pouco, os mais jovens daquele
povoado passaram a sentir vergonha do próprio corpo. Começaram a esconder as
partes íntimas, as pernas, o tórax, o abdômen e, no final, já cobriam o corpo
todo. Quando, entre eles, alguém por deslize deixava à mostra algum pedaço de
pele, os demais desviavam o olhar. E se o distraído não se emendasse, voltando
à mesma conduta, era duramente repreendido.
O conhecimento daquele povo, preservado
por gerações e gerações, estava ameaçado. Eles já não aprendiam nada novo. E,
assim, a extinção de todos eles parecia tão certa quanto o apagamento para
sempre dos sinais tatuados, em um passado distante, no corpo dos mais velhos.
Quando morreu o mais ancião dos seus
anciões e um grupo já preparava o enterro em um caixão lacrado, um dos jovens
decidiu não fechar os olhos para o que acontecia. Ao cair em si, rasgou as
próprias vestes, ficando nu diante de seus pares. Aos olhos que o evitavam,
gritou para que todos ouvissem:
— Amigos, olhem aqui: sempre andamos nus
e isso nunca nos pareceu feio ou sujo. De uma hora para outra, fomos
convencidos de que devemos sentir vergonha do nosso corpo e de que nos olhar
mutuamente é repulsivo. Com isso, deixamos de aprender com o outro e com tudo
aquilo que o nosso corpo tem a oferecer. Assim, negamos a nós próprios.
Desfiguramo-nos. Tornamo-nos irreconhecíveis.
Envergonhados, não mais por causa do
próprio corpo, mas pelo comportamento que tiveram nos últimos tempos,
despiram-se todos, deixando à mostra corpos vazios de tatuagens. Juntos,
tiraram de dentro do caixão o corpo do ancião. Toda sua pele estava tatuada. Ao
vê-lo, deram-se conta do quanto ele era sábio e do quanto perderiam se o
enterrassem sem lê-lo.
Fizeram o ritual. Todo o povoado reunido
olhava cada detalhe do corpo do ancião coberto de tatuagens. Como era de se
esperar, dessa vez o ritual demorou mais do que o costume. Afinal, havia muito
que aprender, ainda mais depois de tanto tempo sem exercitar o olhar para o
outro.
* O conto ‘Olhar’ foi selecionado para publicação na primeira edição on-line da Revista Philos.
** Este e outros contos estão na obra Livrinho da Silva. Para aquirir o livro, clique aqui.
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Novos Franciscos
Vermelho coração
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