sexta-feira, 21 de abril de 2017

Tráfico


Um dia quente. O termômetro, que alguns dizem ter quebrado há décadas, acusa em praça pública 233 graus Celsius. O tempo é outro.

Ela embala a encomenda em papel filme e, meticulosamente, a introduz e esconde entre as partes, fazendo a parte que lhe cabe. Em pouco mais de quatro horas, está diante da fortaleza. O fim da fila se afasta da cancela e a espera demora excessivamente, como de costume.

Mais algumas horas depois, ela está na sala da triagem, diante do carcereiro. Despe-se para o exame do desconhecido, que a invade com os olhos, as mãos e outros objetos. Ele a olha como a uma criminosa a transportar armas para dentro do presídio. Ela sua; teme o flagrante, e trocar de lado em relação às grades de ferro. Sabe que o que leva é proibido. E a tropa não costuma ser complacente com quem desobedece às normas. Mas a mulher passa.

O filho a aguarda ansiosamente. Seu abraço mistura saudade, alívio e remorso. Seus olhos a questionam se ela trouxe a mercadoria. Os dela lhe respondem sim. No banheiro, a mulher retira desconfortavelmente o embrulho em formato cilíndrico. Na saída, no canto do pavilhão, sem levantar suspeitas, entrega-lhe o pacote discretamente.

Ele o recebe sem olhar. Abre um sorriso contido. “Era preciso ser assim”, pensam os dois. O levante aproximava-se. Precisavam estar bem munidos para derrubar os tiranos. Por isso, a mercadoria tinha que entrar clandestinamente. Um novo abraço agora mistura despedida e gratidão. Ninguém no mundo passaria por tudo aquilo pelo filho.

Naquela noite, na cela, enquanto os colegas dormiam, com a ajuda de uma fresta na parede, por onde entrava um feixe de luz e de onde o homem também tirou uma faca artesanal, ele cortou o papel filme, abriu o embrulho e leu as primeiras páginas de O Nome da Rosa. Por vezes, esboçou um leve sorriso de alta periculosidade.

* Este e outros contos estão na obra Livrinho da Silva. Para aquirir o livro, clique aqui.
** O conto ‘Tráfico’ foi primeiro colocado no 5º Prêmio Literário Sérgio Farina, categoria Prata da Casa, promovido em 2016, pela Secretaria de Cultura de São Leopoldo/RS.

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