Depois de décadas de
tirania, o imperador e rei estava finalmente morto. O anúncio, feito pelo
porta-voz da Coroa, do púlpito do Palácio, foi recebido pela multidão com
silenciosos vivas. Era o fim de uma era.
O imperador não deixara
filhos. O trono estava vazio. Com apreensão, aguardava-se o nome do sucessor.
Pelos corredores do Palácio, especulava-se, aos cochichos, quem seria o
dito-cujo. Em seu testamento, Sua Majestade, sem explicitar os motivos, deixara
o trono ao menos cotado da Corte: o ouvidor.
O novo imperador, ao
falar, pela primeira vez, à multidão, prometeu novos tempos. O discurso foi
ouvido com intensos aplausos e sonoros vivas. E como não ver o amanhecer com
sorriso nos olhos, quando nosso futuro está nas mãos daquele que sempre nos
ouviu, mesmo quando a ordem era endurecer?
Como ouvidor, do nascer
ao pôr-do-sol, do primeiro ao último das filas que se formavam em volta do
Palácio, por todos aqueles anos, ele recebia, um a um, em sua sala, e ouvia com
atenção, as mais distintas queixas e lamúrias.
Um dia, um triste
acontecido fez-me ir até o mais novo imperador. Como sempre, do fim da fila,
não se viam as portas do Palácio. Terminada a longa espera, contei a Sua
Majestade que um dos seus homens, ao coletar impostos, me levou além do devido.
Dos cinco sacos de estopa cheios de frutos que eu colhera por aqueles tempos,
deixou-me, não os quatro, como de costume, mas tão só um.
Como eu esperava, o
imperador, demonstrando insatisfação com o que ouvira, mandou chamar o tal
homem. Cobrou-lhe explicações e o repreendeu na minha presença. Por fim,
ordenou-lhe que me devolvesse o que era meu por direito.
— Sim, Majestade —
acatou o súdito, sem levantar a vista.
O homem foi lá dentro
e, antes que voltasse com minha colheita, agradeci ao imperador o que fizera. O
coletor de impostos devolveu-me meus quatro sacos de estopa, aparentemente
vazios. Olhei dentro e não vi mais que dois ou três frutos em cada um deles.
Desconcertado, sorri um sorriso amarelo e pensei: “Se fossem outros tempos, nem
isso eu teria.” Voltei para casa, com os sacos de estopa quase vazios sobre os
ombros.
— Para começar, está
bom. Vai melhorar — disse eu a mim mesmo, resignado.
Não tardou muito e
aquele triste episódio me voltou a acontecer: o coletor de impostos levara-me
novamente mais do que devia. Aliás, dos cinco sacos de estopa com frutos, agora
ele me deixara a mísera metade de um dos sacos, e não um saco repleto de
frutos, como outrora.
Tomado pela ira, repeti
o ritual. Fui ao Palácio. Após enfrentar a interminável fila, relatei o
ocorrido ao imperador, que esbravejou indignado contra o coletor de impostos,
que, por sua vez, sem levantar a vista, me trouxe meus sacos de estopa vazios,
ou quase.
Enquanto o homem fora
pegar o imposto a mais que de mim coletara, pude ver, pela porta entreaberta, a
sala de jantar do Palácio. A mesa estava posta. Deduzi que a ceia já esperava o
imperador. Olhei com mais atenção e meus olhos encontraram, entre as iguarias à
mesa, grande porção dos frutos que eu mesmo colhera e que me foram tomados
indevidamente. Compreendi que o imperador não só sabia dos atos reprováveis do
coletor de impostos, como era o principal beneficiário deles. Foi aí que não
consegui mais conter minha ira.
— Majestade... — da
minha boca escapulia o vocativo real.
— Pois não, súdito meu.
— Perdão, Senhor, mas
preciso lhe dizer algo que me incomoda e o atinge diretamente.
— Sou todo ouvidos e
assim será. Fale.
Como me fora concedido
o direito à palavra, externei o que notara e as impressões acerca das
injustiças que me eram infligidas, sob as barbas do imperador.
— Desde já,
entristece-me, Majestade, pensar na possibilidade de que, aquele em quem
depositamos nossas esperanças, tornou-se nosso algoz. Dói-me menos a barriga
vazia que tomar ciência de que vossos banquetes sejam regados pela nossa fome;
que vossa gula se alimente da nossa carência; que o que sobre em vossa mesa,
nos falte; que, daquilo que Vossa Majestade esbanje, nos restem não mais que
migalhas; que vosso deleite seja nossa dor.
Acreditava eu que,
sendo o imperador homem tão justo, reconheceria as próprias falhas e repararia
os malfeitos. De seu lado, Sua Majestade não desviou o olhar, tampouco me
interrompeu uma única vez. Seu semblante conservava-se sereno o tempo todo.
Após ouvir meu desabafo, chamou a guarda e voltou a me escutar: aos berros, eu
clamava que cessassem em mim aquela horrenda tortura, em vão. Implorei que, ao
menos, meus carrascos abreviassem minha dor e me matassem sem demora, mas eles
não me deram ouvidos.
Não bastassem os socos
e pontapés por todo o corpo, por fim, cortaram-me a língua. Minha boca já não
articulava palavra alguma: agora, eu era, tão só, medo, sangue e dor. Como bom
ouvinte que sempre fora, o imperador ouvia tudo de perto. Ouviu-me até o fim.
Até meu fim, foi todo ouvidos.
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