O
ano é 3025 d.C. Não sei exatamente o que isso significa. Alguém, certa vez, me
disse que somos a geração sem memória. Nem lembro mais por quê. Talvez seja o
excesso de informação.
É
véspera de natal. Não há enfeites nos prédios, na frente das casas, nem nas
árvores. Aliás, árvores restam poucas pela cidade. As ruas estão desertas. Não
é por menos. Ruas são lugares perigosos. Por isso, é proibido permanecer nelas.
Por aqui, ficam somente aqueles de muita coragem ou que muito necessitam. Este
é o meu caso. Meu nome é Nicolau. Uma homenagem ao meu avô, o último Papai Noel
de shopping da família.
Com
o avanço da tecnologia, as pessoas deixaram de ir aos lugares fazer compras. As
compras passaram a ir até elas. Os shoppings
ficaram obsoletos e vô Nicolau perdeu o emprego. Minha avó, com quem fui
criado, dizia que as crianças já não acreditavam em Papai Noel, o que acabou
com o espírito do natal. Até hoje, não entendo o que ela quis dizer com isso.
Afinal, as pessoas continuam a gastar muito nas festas de fim de ano, como
sempre foi.
Meu
sonho era ser médico, mas não passo de um andarilho, a perambular pelas ruas,
vestido com a antiga fantasia de Papai Noel do meu avô. Minha vida é pedir
moedas dos poucos que encontro pelo caminho.
Algo
me diz que hoje será um dia incomum. Talvez por causa da manifestação que, pelo
que ouvi dizer, será aqui na Praça Central. Motivos para protestos sobram, mas
há também muito medo do que possa acontecer a quem deles participe.
De
repente, a praça fica lotada. A maioria parece ser de jovens, que cobrem o
rosto com máscaras de LED. A tropa de choque chega logo em seguida. Cada
soldado na sua nave. Há uma gritaria geral, seguida de tumulto, empurra-empurra
e correria. A tropa joga água salinizada na multidão e aciona o dispositivo de
choque. A maioria cai desmaiada. Alguns conseguem fugir. Terminado o trabalho,
a tropa parte em revoada.
Aproximo-me
dos feridos, para ver como posso ajudar. Meu Deus! Entre eles há uma grávida! A
jovem de pele negra e olhar determinado reclama de fortes dores. Com a ajuda de
um homem de barba e cabelos grisalhos, pego-a no colo e a levo a um lugar
seguro perto dali. À sombra de uma árvore, forro o chão com a bandeira lilás
que a jovem trazia na mão direita.
—
O que você estava fazendo, grávida, naquela manifestação? — questiono-a.
—
Era necessário — responde ela.
Penso
em dizer que nunca vira em alguém tamanha loucura, mas digo ‘coragem’.
—
Não há mais tempo para conversa. Ela está em trabalho de parto — interrompe-nos
o ancião, pelas mãos de quem o bebê viria ao mundo, minutos depois.
O
homem confidencia-nos que aprendera com a mãe, viúva, a fazer partos. Ela era
uma mulher forte que, além de ajudar crianças a nascerem, dedicava a vida a
tratar enfermidades dos desenganados que a procuravam.
—
Qual o seu nome, menina? — pergunta o ancião.
—
Maria — ela responde.
—
Parabéns, Maria. Bendito é o teu filho! — diz o homem, ao envolver o menino na
faixa em que se lia ‘Pelos direitos das mulheres’. Ao olhar Maria nos olhos, o
ancião diz que ela lembra outra mulher de muita coragem, e nos conta uma
história que me parece tão familiar, apesar de nunca tê-la ouvido.
Fala-nos
de uma jovem também chamada Maria, que vivera há muito tempo bem longe dali.
Ela estava noiva quando foi chamada para ser a mãe do filho de Deus, aquele
que, ao ouvir o clamor do seu povo oprimido, desceria do céu para libertá-lo.
Maria sabia que aquilo era arriscado. Temia chorar as dores de ver o filho
morto por desafiar os interesses dos poderosos. Antes ainda, corria o risco de
ser apontada nas ruas como mãe solteira e ser apedrejada até a morte, por
trazer no ventre um filho fora do casamento. Mesmo assim, aceitou a missão.
O
noivo de Maria era um homem bom e a amava muito. Não deixaria que o pior lha
acontecesse. Aceitou a noiva e o filho que ela trazia no ventre.
Por
conta de um governo tirano, mesmo com Maria grávida, foram obrigados a deixar a
própria casa. Como retirantes, sem lugar para repousar a cabeça, Maria deu à
luz. O menino foi visitado por humildes trabalhadores das redondezas e gente
vinda de longe, que era acusada de feitiçaria por olhar as estrelas e prever o
futuro.
Anos
mais tarde, aquele menino mudaria para sempre os rumos da História. Daria a
maior prova de amor à humanidade e uma grande lição a todos nós: amar uns aos
outros como ele nos amou.
Ao
ouvir aquelas palavras, a jovem Maria e eu, ali debaixo da sombra daquela
árvore, sentimos arder nosso coração. Da minha parte, por achar que a história
não poderia cair no esquecimento, resolvi levá-la, aonde quer que eu fosse, a
quem precisasse dela.
Agradecida,
a jovem Maria resolveu dar ao recém-nascido o nome daquele que salvara a vida
de seu filho.
—
Como se chama, bom homem? — perguntou ela ao ancião. Com um olhar que nos
inspirava, ele respondeu com mansidão:
— Eu
sou... Jesus.
* Este conto foi selecionado
para publicação na antologia Mirage 2.
Nenhum comentário:
Postar um comentário